O mendigo tinha um pedaço de pão
seco nas mãos. Comia um pouco e distribuía migalhas a alguns pombos
que se reuniam agitados em torno dele.
Clair não conseguiu se conter. Aproximou-se e, num rompante,
interpelou o velho.
— Você está passando fome e ainda dá alimentos aos pombos? —
sem saber exatamente de onde, de dentro de si mesma, havia saído
aquela egoica frase.
— É fácil dar em duas situações — com simpatia respondeu o
velho. — Quando temos muito, dar não faz falta e, quando temos
pouco, já estamos acostumados à falta. Não incomoda mais.
Clair prosseguiu seu caminho, algo perturbada. Ainda deu uma
olhada para trás. O velho continuava lá, alimentando-se e aos
pombos.
“Estranho o comentário dele. Acostumado à falta.” — Clair
pensou.
Um frio percorreu sua espinha. Será que estaria tão acostumada a
alguma falta que não a perceberia mais? E se assim fosse, como mudar
algo que não se percebe?
Retornou meditativa à sua casa. Um mendigo comum conseguira a
façanha, com uma frase, de desordenar sua mente.
No dia seguinte, Clair foi para seu trabalho. O encontro insólito
do dia anterior não saia de seus pensamentos. Havia ali algo
significativo, mas que não conseguia captar com clareza.
Ao menos já havia percebido uma coisa: fosse o que fosse, parecia
importante para sua nova profissão. Como psicóloga, a mudança
seria sua principal ocupação. Mudanças suas e de seus clientes.
“Veremos.” — concluiu esperançosa.
Durante o trabalho não se lembrou do ocorrido no dia anterior.
Como estagiária recém-contratada tinha muito em que prestar
atenção, mas bastou colocar os pés para fora da clínica, ao final
do expediente, e o velho voltou a ocupar seus pensamentos.
“Será que ainda estaria naquela viela?” — desejou.
Ela ficava em seu caminho de volta até o metrô, que a levaria
para casa. Apressou-se um tanto ansiosa.
Ao se aproximar, reduziu os passos para observar melhor.
Em meio a caixotes de papelão, que provavelmente serviam de
moradia, e de restos espalhados pela calçada, estavam o velho, com
uma cabeleira e barba fartas e bem grisalhas, uma mulher de uns
cinquenta anos de idade e dois rapazes adolescentes. Uma família de
moradores de rua.
Aproximou-se cautelosamente. Sua curiosidade era maior que seu
receio. Aquele velho tinha algo de incomum. O espírito investigativo
de Clair estava em franca atividade.
O velho notou que a moça o olhava curiosa.
Pegou um caixote de madeira e colocou-o ao lado do que ocupava.
— Sente-se — convidou amistosamente.
Clair, sem pensar, sentou-se.
E ali ficaram, em silêncio, em paz, olhando para coisa alguma.
Talvez para dentro de si mesmos.
Minutos depois, sem constrangimento, Clair perguntou ao mendigo o
seu nome.
— Me chamam de velho louco. E o seu?
— Clair.
— Clair de Lune, Debussy — o velho levantou os olhos,
sonhador.
— Como um mendigo conhece Debussy?
— Sou mendigo, mas não sou surdo.
Clair riu, constrangida. Algo estava chacoalhando dentro dela.
Chacoalhando demais.
— Foi um prazer conhecê-lo! — levantou-se apressada, sem lhe
dar a mão.
— Também gostei de você — respondeu o velho mais
diretamente.
Clair tropeçou várias vezes enquanto caminhava em direção ao
metrô. Que estranha capacidade tinha aquele sujeito de tirá-la do
eixo.
“Provavelmente” — considerou — “alguém que teve uma boa
vida, acesso à cultura, mas decaiu como ser humano devido a alguma
desilusão, amorosa talvez, uma demissão inesperada, um golpe
financeiro que sofrera ou algo pior como excesso de álcool e drogas.
Perdeu tudo” — imaginava Clair, com alguma tristeza — “e
acabou nas ruas”.
Sua curiosidade aguçava. Durante o dia, lembrou do mendigo várias
vezes. Pegou-se olhando o relógio para saber quanto faltava para o
fim do expediente. Certamente voltaria lá.
— Você veio ontem no mesmo horário, Clair.
— É quando saio do meu trabalho. Sou estagiária de psicologia
numa clínica aqui perto.
— Psicóloga. Parabéns. Consciência humana, the final
frontier.
Clair não teve tempo para pensar. Os dois rapazes que estavam
sentados num colchão sujo, ao lado do caixote de papelão que lhes
servia de abrigo, levantaram-se repentinamente.
Pegaram uns malabares de um sujo saco de papel e um deles avisou:
— Mãe, vamos trabalhar — saindo em seguida.
— Trabalhar… — resmungou o velho.
Clair não gostou do comentário, afinal os rapazes estavam se
esforçando em alguma coisa.
— Por que o sarcasmo?
— O que eles fazem no semáforo não é trabalho — asseverou —
é mendicância. Arranjaram um jeito de disfarçar, e mal, a
inutilidade da vida deles.
“Trabalho remunerado de fato — completou — é o que fazemos
quando atendemos necessidades dos outros e de modo tão bom que as
pessoas nos pagam para isso.”
— Seus filhos?
— Nem sei seus nomes.
“A mulher não é esposa dele. Não é uma família, afinal.”
— deduziu Clair, pensativa.
Mas a resposta do velho a inquietou. Não concordava com aquela
visão.
— Eles não têm culpa de não terem oportunidades na vida.
Alguns nascem em berço de ouro ou tem sorte, outros não. São
vítimas da sociedade — acusou Clair.
— Não há vítimas nem culpados, a não ser juridicamente —
sentenciou o velho.
— Todos somos responsáveis por como corre nossa vida. E
oportunidades não são dadas. As circunstâncias são aproveitadas
por quem for capaz de identificar nelas as probabilidades que
apresentam.
Clair levantou-se abruptamente. Aquilo era como um soco no seu
estômago. Não agressivo, mas penetrante.
Saiu rapidamente sem nem mesmo se despedir.
Sua volta para casa foi um misto de confusão e decisões. Não
voltaria mais lá, acreditava.
Durante o trabalho não pensou muito no mendigo, mas quando se
lembrava, um gosto um tanto amargo despontava em sua boca. Não
voltaria mais lá.
Porém, ao sair da clínica, sentiu que não poderia deixar aquilo
como estava. Algo ali continuava pendente e deveria ser encerrado. Decidiu por
concluir o que começara.
— Você é uma fraude! — esbravejou Clair — Fica aí falando
filosoficamente do quanto o bem é trabalhar para os outros, mas
sentado, passando fome, não fazendo nada. Um verdadeiro fracassado.
O velho olhou profundamente para os olhos de Clair como quem lia
seus pensamentos.
— Minha querida psicóloga — sorriu respeitosamente — você
é perspicaz, mas precisa ir além. Não se prenda ao senso comum
senão não verá mais do que aquilo que as pessoas pretendem
mostrar. Se quer conhecer o íntimo das pessoas dispa-se de conceitos
prévios, aceite o que é evidente, o óbvio, e aguarde a compreensão
se formar. Ela sempre vem, mesmo que, às vezes, demore um pouco.
Clair voltou para casa, dessa vez andando bem mais devagar. Olhava
ao redor como se fosse a primeira vez, como uma turista deslumbrada
em uma cidade que desconhecia. O que poderia existir no “evidente”
que ainda não vira?
Não descobriu nada especial, mas sentiu uma clareza maior, como
se o ar tivesse se tornado mais leve. Percebeu uma sensação de
otimismo, de possibilidades abrindo-se à sua frente. Quantas
oportunidades haveria no seu caminhar diário?
No dia seguinte, Clair acelerou os passos para se encontrar com o
mendigo.
O velho louco estava dançando na viela. Desengonçado,
claudicante, engraçado.
Ao se aproximar, Clair percebeu que os dois rapazes tentavam
imitar o velho, dançando um com o outro, como um par de marionetes.
Clair riu. Havia uma luz mais clara naquela cena.
— Já está bom. — sentenciou gravemente o velho — Podem ir,
estão prontos.
— Se algum motorista lhes der dinheiro rindo — orientou —
terão feito um bom trabalho. Terão levado diversão a alguém. Se o
motorista não rir, não aceitem seu dinheiro. Não é pagamento, é
esmola.
No metrô, Clair sentiu um choque ao considerar que passou muito
tempo dependendo dos pais para sobreviver. Agora estava estagiando,
ganhando algum dinheiro e logo poderia cuidar da própria vida, mas
já estava com vinte e cinco anos de idade. Uma nesga de vergonha
corou sua face.
No dia seguinte, sentou-se com o responsável pela clínica.
Queria traçar um plano mais consistente para sua carreira. Que
oportunidades poderiam ser descobertas mesmo que a longo prazo?
Discutiram longamente e consideraram várias possibilidades.
Clair estava ansiosa para encontrar seu velho e louco amigo, mas
ao chegar à viela, viu, chocada, que estava vazia.
As caixas de papelão haviam sumido, o colchão sujo, tudo.
A mulher e os dois rapazes também não estavam mais lá.
Por um momento o vazio da viela se transferiu para seu peito,
então percebeu que o velho continuava lá, sentado na calçada,
recostado no muro.
— O que aconteceu aqui?
— Eles vieram e levaram tudo. O carro da prefeitura e a polícia.
— E vocês não fizeram nada, permitiram assim sem mais nem
menos? Eram suas coisas, eram tudo o que tinham, como alguém chega e
arrasa a vida dos outros? — esbravejava, agitada — Isso não é
aceitável. O que eles querem? Higienização da sociedade? Só os
ricos têm direitos? Só porque alguém é sujo não deixa de ser
humano — soluçava, com lágrimas nos olhos. — Isso não pode ter
acontecido — andando de um lado para o outro.
— Respire, Clair. Acalme-se.
— Como se acalme? Não quero me acalmar. Quero brigar com esses
desgraçados.
— A vida de mendigo é péssima, Clair. Não há nada de
romântico em morar numa caixa de papelão.
— É livre!
— É uma prisão. Nas ruas você não tem escolha. Não decide
quando vai comer, como vai dormir, se vai ou não tomar banho. É uma
porcaria.
— Mas eles pareciam felizes.
— Mentira! Disfarçavam para não ter que assumir as
responsabilidades da vida em sociedade. Preocupavam-se somente
consigo mesmos. O auge do egoismo.
Clair, um tanto a contra-gosto, pareceu acalmar-se.
Sentou-se no chão, ao lado do velho, com os cotovelos nos
joelhos, as mãos apoiando a cabeça como se pesasse demais.
— E veio também o pessoal do Serviço Social — o velho
acrescentou. — Conseguiram convencer a mulher e os rapazes a irem
para um abrigo da prefeitura. Se alimentarão direito, terão onde
dormir, estudarão e receberão todos os recursos para iniciarem uma
nova vida, produtiva, útil.
Clair entendeu que, na verdade, a mudança poderia ser positiva.
— Talvez a perda seja necessária — concordou.
— Quando um vazio se abre sob nossos pés parece que o mundo
acabou. E de fato acabou — filosofou o velho, — mas somente o
nosso mundinho. Aquele ponto de vista, aquele padrão, aquela prisão.
— Precisamos do vazio — continuou. — É nele em que estão
as oportunidades de uma nova vida.
Clair lembrou-se de que o velho também deveria ter ido para o
abrigo.
Angustiou-se. Não veria mais seu amigo.
Desejou que nada tivesse mudado, que ainda pudesse vir muitas e
muitas vezes ouvi-lo.
E então deu-se conta, envergonhada, de que estava só pensando em
suas próprias necessidades, pouco importando a vida do mendigo que,
por incrível que pareça, havia se tornado seu amigo.
— E você? — tremeu ao perguntar — Por que não foi com
eles?
— Eu estava esperando minha amiga.
— E agora, vai continuar na rua? — ansiosa com a possível
resposta.
— Não se preocupe, minha cara. Sei o telefone e o endereço.
— Ah! Ainda bem — um pouco aliviada, mas ainda sem muita
convicção.
Passaram algum tempo assim, sem pensar. Esperando. Como se algo
suspenso devesse assentar. Um interregno, vazio, mas cheio de
possibilidades.
— Por favor, me empresta o telefone celular? Preciso fazer uma
ligação.
Como que um buraco sem fundo surgiu sob os pés de Clair.
Angustiante. Tudo está mesmo terminando.
O velho pegou o telefone e digitou um número.
Alguém atendeu, e ele, laconicamente, disse o nome da viela e
desligou.
Esperaram em silêncio. Nenhuma palavra era adequada naquele
momento. O vazio imperava, soberano.
Cerca de meia hora depois, um veículo parou na entrada da viela.
O velho se levantou com esforço e, mancando, se dirigiu até o
carro.
Clair acompanhou-o para despedir-se.
Estranhamente o veículo não tinha nenhuma indicação que era do
Serviço Social da prefeitura.
Era preto e de luxo.
O velho aproximou-se da porta traseira e abriu-a.
— O que está fazendo? — gritou Clair, assustada — Vai levar
um tiro do motorista.
O velho entrou no veículo e, sorrindo, convidou Clair a fazer o
mesmo.
Ela não estava entendendo nada. Sua mente em turbilhão. Em uma
fração de segundo viu imagens de sequestros, assassinatos, todo
tipo de crime, mas não se conteve. Uma força irresistível a atraia
para dentro do carro.
Entrou, tremendo, e fechou a porta.
Percebeu que o velho já havia afivelado o cinto de segurança.
— Ô doutor, tá fedendo feito um gambá — disse o motorista.
— Desculpe, Antonio — o velho riu. — Melhor abrir as
janelas.
Doutor? Antonio? O turbilhão na mente de Clair só aumentava.
O carro partiu, sabe-se lá para onde.
O silêncio era total no veículo.
O velho olhava pela janela para os prédios da cidade. Parecia
sonhador, aliviado, como se algo muito importante tivesse terminado.
Algum tempo depois, o carro entrou num bairro rico da cidade que
Clair já conhecia.
Casas grandes, bonitas.
O veículo reduziu a velocidade em frente a uma delas. O motorista
acionou o controle remoto para abrir os portões.
Entrou e estacionou.
— Chegamos. — disse o velho. E abriu a porta.
Desceram.
— Vou ter que higienizar o carro totalmente — disse rindo o
motorista.
— Faça isso, Antonio, faça isso — concordou o velho.
Clair, que se sentia desnorteada como se estivesse no meio de uma
tempestade, espantou-se ao ver o velho subir quase correndo a
escadaria que levava à porta da residência, e sem mancar. Poderia
ter se curado assim tão rapidamente? — duvidou.
Abriu a porta com convicção, como se a casa fosse dele.
— Dona Júlia, cheguei. Vem cá me dar um abraço.
Clair chegou à porta no momento em que uma senhora de uns
sessenta anos de idade saia de outro cômodo, sorrindo, enxugando as
mãos em um pano de prato.
— Finalmente o velho louco voltou. Tá uma catinga só. Nem
morta que vou te abraçar. Vá tomar um banho primeiro.
“Descobri quem o batizou de velho louco” — pensou Clair,
algo divertida.
— Não vejo a hora de tomar um banho. Por favor, prepare um
jantar leve para mim. Não como bem faz dias e é melhor não
exagerar. Para minha amiga, um jantar completo.
— Você vai jantar comigo, não é Clair?
— Si-sim, — gaguejou Clair.
— Fique à vontade, a casa é sua — e saiu por um corredor.
Clair sentou-se numa confortável poltrona.
A sala era grande, mas não suntuosa. Parecia ter o necessário e
organizada para ser útil. Bela, elegante e funcional.
Alguns minutos depois, Dona Júlia surgiu com uma bandeja e
ofereceu a ela um suco de uva.
Clair aceitou de bom grado, mas isso não aliviou o turbilhão
dentro de sua cabeça.
Vinte minutos depois entrou na sala, vindo do corredor, um rapaz
de uns trinta anos de idade, de aparência jovial, alegre.
“Deve ser filho do velho” — considerou Clair.
Dona Júlia também surgiu à porta de acesso à cozinha.
— Agora sim, posso te abraçar, meu menino limpo e cheiroso. Sem
aquela barba nojenta, aquela cabeleira ridícula, mas continua louco.
— Não é possível — espantou-se Clair. — Você é o velho
louco?
— Sou um bom ator, não sou? — gracejou.
Estendeu a mão para Clair num gesto pomposo, brincando.
— Muito prazer, senhorita. Sou Marcel.
O chão pareceu voltar à Clair e sua mente acalmou-se. O mundo
estava normal novamente.
O jantar transcorreu em grande animação.
— Clair, tenho um amigo, ator de teatro, que estreia uma nova
peça hoje. Vamos?
Clair levantou-se, dando a mão a Marcel.
— Vamos.